Coincidências (?), Metáforas e... Chuva de Sapos
Você deixou de se desculpar com alguém?... — Porque essas pessoas partiram ou se distanciaram
antes que isto fosse possível?... Foi por conta do teu orgulho
e raiva, que não te permitem pedir desculpas?Há ainda pessoas
que não teve coragem e honra de se desculpar?...
Pobres seres que somos. Lançados no mundo cheio de incertezas ainda somos vítimas de coincidências inexplicáveis que tentamos explicar através da existência de um sentido oculto. Mas, nem disso temos certeza e nem mesmo é suficiente para gerar a tranqüilidade que tanto buscamos. Além do mais, a morte nos espreita impondo seu inexorável limite à nossa ilusão de eternidade. Não temos todo o tempo do mundo para fazermos o que temos ou desejamos fazer. Muitas vezes, é tarde demais.
Os temas morte, sentido, arrependimento, sonho, desejo, solidão, chance, esperança, medo, renascimento, ódio, perdão, desculpas e culpas atravessam como dardos pontiagudos o magnífico filme Magnólia, escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson com música de Aimee Mann. A menção à autora da trilha sonora não é mera formalidade. O próprio diretor, no encarte do cd da trilha sonora, reconhece que seu filme é uma espécie de adaptação das músicas da compositora, como se faz com um livro. Dois momentos importantes do filme, na verdade, giram em torno de duas canções onde a música fica quase em primeiro plano. Deixaremos para mais adiante um comentário maior sobre estas duas canções.
O filme começa com a narração de três incríveis coincidências que o narrador se recusa a aceitar que foi mero acaso. É como se tudo houvesse sido anteriormente planejado e as pessoas envolvidas tivessem desempenhado seus papéis com absoluta precisão. Todos no momento e no lugar exatos. Nem um segundo a mais, nem um milímetro a menos. O espanto causado por esta extrema sincronia leva-nos, como ao narrador, a insistir na tese de que não foi uma mera coincidência.
Jung (vai no Google) nos fala da sincronicidade (vai de novo!) o princípio de conexão acausal. Ou seja, dois ou mais eventos se aproximam de forma que alguma conexão entre eles possa ser estabelecida, embora esta conexão não tenha sido criada por quaisquer meios causais, por exemplo, a força do pensamento. Imaginemos. Passei o dia inteiro querendo encontrar uma determinada pessoa. A força do pensamento fez com que realmente eu a encontrasse. Esta maneira de raciocinar não está de acordo com o que Jung entende por sincronicidade, pois ele enfatiza a acausalidade da conexão entre os eventos. Por isso, ele afirma que a sincronicidade é uma coincidência significativa. Contudo, da maneira que entendo Jung, a sincronicidade não significa nada, nós que presenciamos os fatos é que significamos. Uma conhecida minha, certa vez, com dificuldades em encontrar um apartamento para alugar, passou em uma praça e, naquele exato momento, um ninho de passarinho caiu na sua frente. Segundo seu relato, naquele instante, ela teve certeza que iria encontrar um apartamento para alugar. Esta sua certeza surge de um ato interpretativo de uma experiência sincronística. Ela poderia ter interpretado o ocorrido também como um sinal de que não encontraria um apartamento ou, pelo menos, que sua busca seria longa e dolorosa, visto que o passarinho também teria perdido sua casa. O evento sincronístico simplesmente coloca frente a frente dois seres com problemas de moradia em uma espécie de solidariedade da natureza. Como esta coincidência significativa será interpretada por nós estará sujeita a todos os riscos, desvios e incertezas de qualquer processo interpretativo. É justamente aqui que residem todas nossas angústias, nossas problemáticas, nossa criatividade, nossas chances. Como recebemos os fatos, como recebemos os outros, como somos recebidos por eles? Tudo isso habitado por um sem número de processos interpretativos incapazes de criar uma certeza estável e suficientemente duradoura, embora esta possibilidade seja realmente uma possibilidade. Para lidar com isso, recorremos a infinitos esquemas de controle, subterfúgios, auto-enganos, ilusões, etc., que nossos mestres Freud e Jung nunca se cansaram de descrever.
Após o relato das coincidências o filme prossegue com uma rápida e entrecortada apresentação dos personagens cujos destinos e estratégias de sobrevivência iremos acompanhar por quase três horas de duração. Neste momento surge a primeira música cantada por Aimee Mann. De autoria de Harry Nilsson, seu título é One e sua letra nos fala que o um é o número mais solitário que existe. Depois do um, dois é o número mais solitário que existe. Além do mais, diz também que o não é a experiência mais triste que alguém pode ter, porque um torna-se o que de fato é – solitário!. Seu último verso quase explica porque disso - porque ele é muito pior do que o dois, por se tratar do resultado da divisão do dois. O um, sonho de unidade e auto-suficiência, é dividido, diria originariamente, pela necessidade do dois, por nossa necessidade do outro. Porém, como o dois também é um número solitário, nem isso, muitas vezes, basta. O Outro não é aquele outro que imaginamos. Como dizem Levinas e Jung, o outro é sempre o totalmente Outro. Continuamos solitários, quer como um quer como dois, embora, seja possível acontecer o contrário. E acontece. Como veremos, o verbo acontecer tomará uma dimensão quase que mágica próximo ao final do filme.
Enquanto a música One é cantada inúmeras vezes, as personagens são gradativamente apresentadas. O primeiro a aparecer é o guru sexual Frank Mackey (Tom Cruise). Autor do livro "Seduza e Destrua" que ensina técnicas para dominar qualquer mulher. "Respeitem o pinto e domem a vagina" é seu orgulhoso lema. A técnica principal é a linguagem. Através dela podemos penetrar nas experiências íntimas e nos desejos e sonhos de uma mulher. Falando coisas que ela quer ouvir, um homem pode conquistá-la. Aqui entra o problema da interpretação. A linguagem, meio que utilizamos para nos fazermos entender, é habitada, segundo Jacques Derrida, por um tal número de parasitas que a torna sujeita a inúmeros desvios e perdas. Tudo que falamos não passa de promessas, mas nada garante que as promessas sejam verdadeiras ou que serão cumpridas. Naturalmente, Frank Mackey se acha protegido de ser vítima de uma mulher que também lhe fale e toque seus desejos e sonhos. O que ele propõe é uma operação de guerra onde o homem terá sempre o controle.
O próximo personagem é Jimmy Gator (Philip Baker Hall). Ele é apresentador do programas de perguntas "O que sabem as crianças?", onde 3 crianças são desafiadas por 3 adultos. Com 12000 apresentações em 30 anos de carreira, Jimmy Gator é a imagem da honradez da televisão. Mas sua vida real não se conforma a este ideal. Logo no início do filme, procura a filha Claudia para tentar uma reconciliação. Conta para a filha que está com câncer, mas é expulso do apartamento sob berros e xingamentos. No final do filme descobriremos porque este ódio da filha pelo pai.
A seguir vem Donnie Smith (William H. Macy), um antigo campeão do programas de perguntas para crianças, mas que é, atualmente, um imbecil fracassado e desajeitado. Embora, tivesse dominado um grande número de informações quando criança, este conhecimento inútil em nada o ajudou na vida. Despreparado e carente, perde o emprego e se individa para comprar um aparelho de dentes, que não precisava, só para chamar a atenção do barman pelo qual estava apaixonado. Sua frase favorita é que realmente tem muito amor para dar, só não sabe onde colocá-lo.
Earl Partridge (Jason Robards) é o produtor de televisão que protagoniza o agonizante paciente terminal que luta com suas culpas e arrependimentos. Pai de Frank Mackey, é odiado pelo filho por tê-lo abandonado aos 14 anos de idade. Sofre muito, a ponto de ter que tomar morfina, alterna momentos de inconsciência com instantes de profunda lucidez onde compartilha com o dedicado enfermeiro Phil Parma (Philip Seymour Hoffman) suas angústias e último desejo: reconciliar-se com o filho. Phil Parma, que em nenhum momento expõe suas culpas e arrependimentos, funciona com um bom ouvinte das fraquezas humanas. Sua atitude receptiva, afetiva e cuidadosa com Earl Partridge representa a compaixão pelos desencontros humanos que ele busca remediar aproximando pai e filho.
Linda Partridge (Julianne Moore) é a jovem esposa de Earl Partridge. Casada, a princípio, por interesse, descobre, diante do moribundo marido, que o ama. Passa todo o tempo muito nervosa, agressiva, tentando reparar seus erros e traições. Tenta o suicídio, mas é salva a tempo.
Claudia Wilson Gator (Melora Walters) é a filha do apresentador Jimmy Gator. Ferida emocionalmente, distanciada de um contato afetivo com os pais, refugia-se em seus vícios, tv e cocaína. Sente-se incapacitada de despertar amor e, por isso, afasta-se quando surge a oportunidade, pois teme que ninguém será capaz de suportar sua verdade.
Jim Kurring (John C. Reilly) é o honesto, devotado e idealista oficial de polícia. Viúvo e inseguro, não consegue encontrar um novo amor. Sente-se humilhado quando perde sua arma. Seu lema é sempre tentar fazer o bem, ser bom. Por isso, ao se apaixonar por Claudia, é capaz de superar todas as suas tentativas de fazer fracassar o encontro.
Stanley Spector (Jeremy Blackman) é o garoto gênio que está prestes a quebrar o recorde do programa de perguntas e ganhar o polpudo prêmio em dinheiro para a alegria de seu sempre apressado e desinteressado pai. Apaixonado pelo conhecimento e pelos livros revolta-se com a produção do programa e recusa-se a responder a pergunta que lhe daria a vitória, para desespero de seu pai.
Estas são as personagens que ajudarão a desvelar uma gama de sentimentos dos quais somos, não apenas vítimas, mas, igualmente, seus co-autores. Todas elas se tocam em algum ponto da história, revelando suas estratégias de sobrevivência através de situações verossímeis (ou seja, situações absurdas mas possíveis de serem realizadas, a começar pelas incríveis coincidências no início do filme) e plenas de metáforas.
Somos seres complexos. Isso é ao mesmo tempo nosso fardo e nossa riqueza, nosso desespero e nosso sentido. James Hillman em um importante texto sobre traição faz uma leitura interessante da história bíblica de Adão e Eva. Resumindo muito seus argumentos, para Hillman o fato de Eva, a imagem arquetípica da traição por excelência, ter nascido da costela de Adão, aponta para o potencial de traição e auto-traição que trazemos conosco. A todo instante Evas estão brotando de nossas costelas, gerando novas e conflituosas situações existenciais, muitas vezes além da nossa capacidade de elaboração e entendimento.
Earl Partridge, por exemplo, alternando estados de lucidez e inconsciência, devido à morfina que tinha que tomar para suportar a dor causada pelo câncer, representa exatamente esta confusão e complexidade que nós somos. Oscilamos entre extremos de consciência e inconsciência, onde algo se apodera de nós sem sequer percebermos. Nesse momento nasce uma nova Eva inocentemente pronta a ceder à menor tentação. Alguns chamam isso de desejo; outros, de manifestações arquetípicas; tem aqueles que colocam toda a culpa em um ente chifrudo e negativo; outrora, chamavam de intervenções de deuses múltiplos. Não importa o nome. Importa sabermos que somos impotentes. Não há, porém, saída, caso contrário correríamos o risco de ter nossa vida tão calculada, tão pré-estabelecida que o resultado seria um empobrecimento generalizado. Por outro lado, isto não nos exime da responsabilidade em relação às nossas ações. De qualquer modo, a oscilação de Earl Partridge entre confissão e anestesia toca o âmago das nossas questões éticas em relação ao Outro. Dói muito reconhecer nossos erros e fraquezas. Daí a necessidade de morfina que possui o efeito colateral - o filme enfatiza isso claramente - de fazer desaparecer todas nossas características pessoais. Anestesiados, caminhamos com nossas personas, nossas máscaras, como disse Jung, achando que elas são nossa única verdade. A grande dor de Earl Partridge não era aquela causada pelo câncer, mas aquela causada pelos seus atos. Esta dor só passa através da confissão e do perdão. Por isso seu desejo e sua necessidade de falar com seu filho abandonado. De resto, ficamos no lugar do bom enfermeiro, o bom ouvidor, testemunhando e ouvindo as frases mais lúcidas e verdadeiras que, muitas vezes só a proximidade da morte nos faz ter a coragem de proferir.
O filho abandonado, como já sabemos, é Frank Mackey, o superhomem que ensina aos homens não necessitarem de mulher. Incapaz de elaborar a morte da mãe e o abandono do pai estabelece uma verdadeira declaração de guerra contra a nossa necessidade de nos relacionarmos com o Outro. Encarna isso na mulher e faz dela o inimigo que deve, ao mesmo tempo, ser desejado e desprezado. Lembram-se? "... devemos respeitar o pinto e conquistar as vaginas!" Não há espaço para o amor, pois, no séquito de Afrodite, como muito bem retrata uma pintura renascentista, caminham, junto ao desejo, ao prazer e à alegria, a loucura, o ciúme, a inveja, o desespero, a saudade, o medo. No amor não há nenhuma garantia de reciprocidade. Posso desejar alguém ardentemente e não ser retribuído. Situação que nos leva à beira do desespero. Para evitar isso, portanto, não podemos amar. Temos que dominar, controlar, subjugar... e inventar uma história que nos ajude a convencer que estamos no caminho certo. Frank Mackey inventou uma outra história familiar, mais leve e digerível, mas falsa. Quando confrontado com a verdade trazida pela jornalista que o entrevistava, aquela fortaleza auto-suficiente desaba. Sua persona de machão começa e derreter revelando sua verdadeira face: "adoslescente-abandonado-pelo-pai-que-teve-de- cuidar-sozinho-de-sua-mãe-doente". Esta figura ainda estava viva e com muita saúde em seu interior.
Como o filme utiliza o recurso das coincidentes sincronicidades para acelerar os acontecimentos, é justamente nesse momento em que sua alma sangra pela ferida causada pela verdade inaceitável que ele recebe a notícia que seu pai deseja revê-lo. Este encontro é um dos mais belos e intensos momentos do filme.A princípio xinga o pai e sente prazer em vê-lo sofrer. Logo depois, chorando e desesperado, pronuncia este verdadeiro oxímoro: "não morra seu filho-da-puta".
As histórias dos outros personagens correm por trilhas semelhantes. Donnie Smith acha que colocando um aparelho nos dentes chamará a atenção de seu amado. Rimos do ridículo da situação, mas não a vejo de forma diferente daquilo que nós todos fazemos. Se eu comprar o carro X terei sucesso. Se eu possuir aquele vestido da famosa griffe francesa vou conseguir o homem que tanto desejo. Etc., etc., etc. São truques, que muitas vezes funcionam, mas que, principalmente, ajudam-nos a esquecer de como os encontros são difíceis e instáveis. Claudia Wilson Gator, por exemplo, desesperada em busca de alguém que a ame e cuide, descobre no policial honesto a possibilidade disto acontecer. Deseja ser verdadeira. Propõe que só falem a verdade. O risco e o medo, porém, são grandes. Prefere desistir do que tentar.
Todas as personagens passam por um crescendo de sofrimento e tensão quando, de repente, começam a cantar "Wise Up" de Aimee Mann, que fala de nossos arrependimentos necessariamente tardios, fala de nossos desejos de outrora que agora não conseguimos mais suportar. Conclui: nada disso irá parar até que tenhamos os olhos abertos.
Mas, engana-se quem pensa que Magnólia seja um filme pessimista. Muito pelo contrário. Ele nos diz que é possível haver mudanças, que é possível o perdão, a compreensão, que os encontros são possíveis, que é possível abrir os olhos. Nos apresenta estas possibilidades através de um fato inusitado: de repente começa a chover sapos. Esta cena aparentemente absurda dá sentido e esperança ao final da história. Por vezes, é verdade, por meio de situações absurdas podemos encontrar o sentido das coisas.
Como entender esta chuva de sapos. Mais uma vez o diretor Paul Thomas Anderson é dadivoso conosco e nos dá suas pistas. Em determinado momento aparece uma cena em que Stanley Spector, o garoto gênio, aparece estudando em uma biblioteca. Está cercado de livros de metereologia. Quando começa a chuva de sapos, ele aparece novamente, novamente estudando, e percebe o que está acontecendo. Com olhos arregalados, exclama: "isso acontece, é uma coisa que acontece"! A chuva de sapos não é da ordem do milagre, do absurdo, da impossibilidade. Existem vários relatos que se estendem até a Grécia antiga onde descrevem-se chuvas de sapos, peixes e outros pequenos animais. Se é possível chover sapos, se isso é uma possibilidade real, também é possível nós nos encontrarmos, nos perdoarmos, nos amarmos.
Junto com a chuva de sapos, Frank Mackey perdoa seu pai Earl Partridge; Jimmy Gator e Linda Partridge são salvos de suas tentativas de suicídio; Donnie Smith arrepende-se e devolve o dinheiro que havia roubado de seu antigo emprego; Claudia Wilson Gator se reencontra com sua mãe; Stanley Spector pede ao seu pai mais respeito e carinho; Jim Kurring, o policial, não aceita a desistência de Claudia e a procura. Esta é, inclusive, a última cena do filme. Ao fundo a voz de Frank Mackey fala que se tudo isso fosse em um filme ele não acreditaria, é real. Fala mais: "o passado já era para nós, mas não nós para o passado". Só revisitando-o que poderemos lidar verdadeiramente com ele. Mas o rosto sorridente de Claudia chorando de emoção por alguém ter rompido sua barreira de medo e isolamento nos dá esperança e confiança. Que chovam sapos, muitos sapos!